Ódio como produto cultural 

Quanto mais eu sei, mais descubro o quanto ainda não sei. Diferente do ignorante, que pouco ou nada sabe e acredita em soluções mágicas e verdades absolutas. O impacto do desconhecido sobre o medo, a angústia e o ódio é maior do que se imagina.

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Quanto mais eu sei, mais descubro o quanto ainda não sei. Diferente do ignorante, que pouco ou nada sabe e acredita em soluções mágicas e verdades absolutas.

Sustentar o "não saber" é uma qualidade daqueles que confiam em seus próprios recursos internos. O impacto do desconhecido sobre o medo, a angústia e o ódio é maior do que se imagina. Enquanto o objeto do medo é conhecido, o sujeito consegue lidar e criar fantasias para se proteger e defender. Porém, ao perder o contato com o objeto causador do medo, este se converte em angústia. Quando a angústia é fonte de conversão do medo, ela é reformulada e se transforma em ódio.

Todos os afetos, tanto os positivos quanto os negativos são importantes. Vivemos em uma sociedade que evita a todo custo entrar em contato com os afetos negativos. Medicar-se ou  alienar-se são opções bem tentadoras para evitar o confronto com esses afetos. No entanto, outra forma de reagir ao medo, quando convertido em angústia, é através do ódio. Alguns só conseguem se proteger daquilo que conhecem; nesse caso o medo é gerenciável. Quando o mundo se torna complexo demais e os objetos que o assustam são diversos, instaura-se o caos na psique.

Tolerar o medo e a angústia possibilita a expansão mental. Sustentar o medo e a angústia  favorece a criação do mundo, com novas ferramentas, engenharias, tecnologias, sistemas matemáticos e ciências para proteger as pessoas contra seus medos e angústias mais profundas. A verdadeira proteção é aquela que resiste ao nosso senso crítico. A angústia é fundamental para o processo de conhecimento,  para se gostar de saber, de descobrir novos métodos, novos mundos e novas possibilidades de existência.

Alguns, aprendem a transformar o medo em ódio, sempre que não se sabem com o que estão lidando; perdem o controle quando o objeto do medo perde sua forma. O sistema interno de medo entra em colapso. Calcular e agir contra o medo deixa de ser eficaz; o sujeito vocifera, e parte para o ataque por desconhecer o cenário, o contexto e a gramática das relações. Isso é chamado de ação inespecífica, um ato psíquico não especificado.

Quando o indivíduo, possuído pelo ódio, ataca o outro, o resultado é sempre catastrófico. A atitude errática de atacar quem não se conhece e sofrer o contra-ataque faz com que o ódio retorne ao sujeito e a culpa e o super eu entra em ação.

Por exemplo, em uma situação social, com salários menores, excesso de trabalho, perda de emprego, crises climáticas e um futuro incerto, os objetos de medo tornam-se difusos, ambíguos ou ocultos. 

É necessário um grande “continente”- ou seja, uma capacidade ampliada de lidar com o aleatório, o desconhecido, o instável, o inconstante e vacilante.

O mundo atual exige uma expansão desse "continente" para que o indivíduo não se torne presa fácil do recrutamento do ódio.

Diante do duro conflito interno para  abertura e espaço mental capaz de acomodar um mundo instável em constante mudança, surge alguém aparelhado pelas redes sociais,  oferecendo uma solução fácil e indolor: agora, não será mais necessário conhecer a lógica social, entender sobre os impactos do neoliberalismo, as questões de gênero, a crise climáticas, a luta racial, o etarismo ou ter consciência de classe. Você não precisa exercitar a inteligência, pensar é muito desgastante; te oferecemos o “kit ódio”. Como ele, você se protegerá de todas as inconveniências de lidar com as diferenças e de sustentar a angústia. O kit ódio é tão eficaz que você vai amar odiar, querendo sentir cada vez mais ódio. Assim, não haverá mais política, discussão de ideias, espaço para o contraditório, para o pensamento divergente e muito menos precisará conviver com as diferenças. Vamos viver o prazer do ódio, não importa contra quem; basta escolher os culpados de sempre, eleja os que quiser. O importante é desqualificá-los e evitar a angústia. E o melhor de tudo é que você poderá faze todos os ataques de ódio de forma anônima, através das plataformas digitais!

E assim, uma multidão de pessoas são abduzidas pelo ódio. O ódio engaja; os discursos de ódio são monetizados nas redes sociais, são muito bem pagos.Toda vez que um afeto remunerar alto, ele tende a se tornar hegemônico e a se converter em uma pressuposição geral do contrato social, isto é, em um sentimento. 

O ódio generaliza, desumaniza,  tira a individualidade e coloca todos na mesma categoria, sem considerar as diferenças e as dificuldades individuais. O odioso é um generalista, que pensa no atacado.

Além disso, o ódio é uma moeda de prazer interno, que gera uma recompensa emocional. O exercício do ódio torna-se uma dependência: quanto mais alguém odeia, mais deseja odiar e narrar seu ódio.

O medo, ao contrário, individualiza e nomeia; pode ser um caminho para a gestão do ódio. Desconstruir discursos de ódio através da individualização coloca o odioso frente ao olhar do outro. O impacto desse olhar pode oferecer um enquadre, devolvendo-o ao medo e permitindo que ele repense sua posição no mundo.