Como você se relaciona com o trabalho?

Além de nos relacionarmos com pessoas, nos relacionamos também com instituições e com outros objetos em geral. Entender o tipo de relação que estabelecemos com o trabalho e com o emprego nos ajuda a identificar os maiores conflitos dessas relações

Article Image

Hoje comemoramos o dia mundial da saúde mental. Dia especial para falar sobre os impactos das relações com o emprego e com o trabalho no adoecimento mental. Além de nos relacionarmos com pessoas, nos relacionamos também com instituições e com outros objetos em geral. Entender o tipo de relação que estabelecemos com o trabalho e com o emprego nos ajuda a identificar onde moram os maiores conflitos dessas relações. A relação com o trabalho pode ser influenciada por outros fatores, como por exemplo desalinhamento com a cultura organizacional ou incompatibilidade com o estilo de liderança.

Ao longo da vida, nossa relação com o trabalho se transforma. A depender do estágio profissional que se encontra poderá ter uma relação mais ou menos íntima com o trabalho. Em alguns estágios, produzir está altamente vinculado à recompensa financeira; em outros estágios, a aspiração torna-se fundamental para que o trabalho tenha significado na vida. Independente das oscilações de significados que o trabalho assume ao longo da vida, considero saudável aproximar-se ao máximo de uma atividade com a qual você se identifique e que lhe proporcione prazer. Quando é possível viver de uma atividade prazerosa, até o emprego e demais relações decorrentes dele tendem a ser mais satisfatórias.

No entanto, é crucial diferenciar o prazer autêntico daquele que é sustentado pela repetição de padrões inconscientes de sacrifício e autossabotagem. O sujeito, inconscientemente, pode usar o trabalho como uma fuga de questões mais profundas, ou como uma tentativa de preencher um vazio existencial que nunca será preenchido apenas pelo fazer produtivo.

Em algum ponto anterior, destaquei o espaço mental que o trabalho ocupa na vida do sujeito. Para algumas pessoas a energia investida no trabalho supera em muito o investimento feito por outros. Isto é bastante individual. Desde que o tempo e a energia psíquica dedicados ao trabalho sejam conscientes, admitimos essa escolha como determinada pelo sujeito. Torna-se uma problemática quando se trabalha horas a fio e  pensa-se no trabalho 24 horas por dia, sem ao menos se questionar o porquê de tanto investimento e, sobretudo, se há retorno sobre esse investimento e qual é o custo envolvido.

A inobservância da vida do trabalho, assim como em outras dimensões da vida, pode levar a alienação e a submissão a estruturas corrompidas, lideradas por pessoas igualmente alienadas e adoecidas. Geralmente, o desfecho dessas situações é conhecido por muitos: o burnout.

A relação com o trabalho ou emprego que resulta em burnout já estava comprometida há muito tempo, muito antes dos primeiros sinais evidentes de esgotamento, mas isso não foi percebido. O burnout não ocorre de um dia para o outro; é um processo longo e árduo de exploração externa e autoexploração.

Refletir sobre como nos relacionamos com o emprego e o trabalho deveria ser um hábito constante. Se possível, contar com o acompanhamento de um psicanalista pode proporcionar melhores insights. Porém, se isso não for viável, você mesmo pode avaliar como se relaciona com seu emprego, seu ambiente de trabalho e seus colegas. Se chegar à conclusão de que essas relações não são saudáveis, reformule-as ou afaste-se delas. A principal responsabilidade por proteger sua saúde física e mental é sua.

A relação com o trabalho é complexa e multifacetada. Podemos olhar para o trabalho como uma parte central da existência humana, um campo no qual buscamos não apenas sustento, mas também significado, propósito e identidade. O trabalho é uma forma de autoexpressão, onde o ser humano transforma a natureza e, ao fazê-lo, transforma a si mesmo. No entanto, na medida em que o capitalismo moderno aliena o trabalhador do produto do seu trabalho, esse processo se inverte: o trabalho deixa de ser uma extensão do ser e passa a ser um fardo, uma imposição externa. Esse conceito de alienação é fundamental para compreendermos os desvios que podem ocorrer na nossa relação com o trabalho, especialmente quando sentimos que nossas aspirações, talentos ou valores estão desconectados daquilo que fazemos diariamente.

O trabalho também pode ser visto como um espaço onde se manifestam muitos dos nossos conflitos internos. Sigmund Freud, por exemplo, acreditava que o trabalho era uma das formas mais nobres de sublimação – o redirecionamento de impulsos inconscientes, como a agressividade ou o desejo sexual, para atividades socialmente produtivas. Nesse sentido, trabalhar pode ser uma maneira de dar forma e sentido a desejos profundos e inconscientes, tornando-o uma fonte de satisfação e realização pessoal. No entanto, quando o trabalho não é escolhido conscientemente ou não reflete os verdadeiros desejos do sujeito, ele pode se tornar uma forma de repressão, criando conflitos internos que podem resultar em angústia, ansiedade ou até depressão.

Essa relação, portanto, precisa ser examinada sob a luz do conhecimento de si. Somos seres livres: o que significa que, mesmo que as condições externas nos limitem, temos a liberdade e a responsabilidade de escolher o modo como nos relacionamos com o mundo, e isso inclui o trabalho. A escolha de não refletir sobre essa relação, de seguir em uma rota automatizada sem questionamentos, pode nos levar a um estado de "má-fé", onde nos enganamos sobre nossas próprias escolhas, vivendo vidas que não sentimos como nossas.

A psicanálise nos ajuda a aprofundar essa reflexão ao propor que nossa relação com o trabalho é, muitas vezes, uma representação simbólica de outras relações mais primitivas, principalmente com figuras de autoridade, como os pais. O chefe, o líder, ou a própria instituição podem, inconscientemente, ocupar esse lugar simbólico de autoridade parental, reproduzindo, no ambiente de trabalho, conflitos não resolvidos da infância. Isso explica por que muitas pessoas se sentem constantemente "em dívida" com o trabalho, como se estivessem sempre devendo mais desempenho, mais horas, mais esforço – uma demanda que, de certa forma, nunca pode ser completamente satisfeita.

Como Jacques Lacan diria, o desejo humano é sempre desejo do Outro – e no contexto do trabalho, esse Outro pode ser o reconhecimento social, a validação dos pares ou até mesmo a construção de uma identidade que se ajuste às expectativas externas. O problema surge quando o desejo pelo reconhecimento ou sucesso se sobrepõe à própria satisfação do sujeito, levando-o a negligenciar sua saúde mental, seus relacionamentos e suas verdadeiras aspirações em prol de uma idealização do sucesso que, no fundo, nunca será suficiente.

Portanto, é essencial que cada indivíduo busque entender suas motivações mais profundas em relação ao trabalho. A psicanálise oferece ferramentas para essa investigação, ajudando-nos a decifrar o que realmente buscamos quando nos envolvemos em determinada atividade profissional. Será que estamos buscando realização, ou estamos tentando preencher um vazio deixado por outra perda? Estamos fugindo de algo ou estamos, de fato, criando algo que nos conecta ao mundo de forma significativa?

A busca por uma atividade profissional que nos traga prazer e significado é, em última análise, uma busca pela autenticidade. Isso implica reconhecer as pressões internas e externas, os desejos inconscientes e as demandas da sociedade, mas também desenvolver a coragem de se distanciar de relações que nos adoecem, incluindo as relações com o emprego. O equilíbrio não está em encontrar um emprego "perfeito", mas em construir uma relação com ele que respeite nossos limites, desejos e, acima de tudo, nossa saúde mental.

Esse processo de autoconhecimento e reavaliação pode ser desafiador, mas é o caminho para que o trabalho se torne uma fonte de realização, e não de exaustão. Ao reconhecermos que o trabalho é apenas uma parte de quem somos, e não a totalidade do nosso ser, podemos libertar-nos da armadilha da sobre-identificação com ele, encontrando um espaço mais equilibrado e saudável para viver nossas escolhas.